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Os animais marinhos como ferramentas para o desenvolvimento da medicina

Atualizado: 1 de out. de 2021

Autores: Filipe Guilherme Ramos Costa Neves, Mariana P. Haueisen, Thais R. Semprebom e Douglas F. Peiró



Desenho em preto e branco de uma lula gigante com a cabeça voltada para o lado esquerdo e os tentáculos voltados para o lado direito.

Ilustração do gênero de lula-gigante (Architeuthis sp.). Esta espécie auxiliou no entendimento do potencial de ação dos neurônios. Fonte: Verrill, A. E./Wikimedia Commons (CC0).



O vapor de água que existia na atmosfera primitiva condensou-se e precipitou preenchendo as partes mais baixas da superfície terrestre, formando assim os oceanos primitivos. Devido às altas concentrações de matéria e de energia, as primeiras células encontraram o meio propício para se desenvolverem. As células atuais possuem todas as propriedades que a vida requer para acontecer:

  • organização celular

  • sensibilidade

  • crescimento

  • desenvolvimento

  • reprodução

  • regulação

  • homeostase

  • hereditariedade


Os seres vivos são formados por células que apresentam diferentes formatos, tamanhos e funções, embora mantenham semelhanças entre si. Conquanto, por mais que tenhamos conhecimento sobre a diversidade das células, muitas funções celulares ainda não foram elucidadas. Desse modo, muitos organismos marinhos têm sido utilizados como modelos para estudos biomédicos a fim de compreendermos aspectos da sua morfologia e fisiologia, que servirão para melhoria da saúde tanto dos animais quanto dos próprios seres humanos. Consequentemente, haverá melhorias na tomada de decisões para a conservação das espécies.



OS ANIMAIS MARINHOS COMO MODELOS BIOMÉDICOS


Fotografia de uma arraia, de coloração levemente alaranjada com pontos azuis em sua parte dorsal, nadando sobre o sedimento marinho arenoso de cor cinza.

Raia Torpedo sp. utilizada para a caracterização e clonagem de receptores de acetilcolina. Fonte: Roberto Pillon/Wikimedia Commons (CC BY 3.0).



Estudos com organismos marinhos e seus processos podem auxiliar tanto no entendimento do ecossistema quanto na saúde dos próprios seres humanos. Estudos comparativos são importantes para elucidar fenômenos evolutivos, mas também para a identificação de características essenciais sobre a função de determinadas estruturas que se assemelham entre os grupos de seres vivos.


Ao investigar um fenômeno biológico, é necessário escolher o modelo animal que melhor permite sua experimentação. Por exemplo, a raia elétrica Torpedo sp. foi utilizada para a caracterização do receptor de acetilcolina, que auxilia na transmissão do impulso nervoso. Esse receptor é encontrado em grandes quantidades nas células da arraia, permitindo determinar a estrutura da proteína sem mesmo purificá-la. Isso não seria possível se algum mamífero fosse utilizado, porque seus neurônios são de difícil acesso e apresentam poucas quantidades desses receptores.


De todos os grupos animais, a maioria é encontrada no ambiente marinho. Essa diversidade é um dos motivos pelos quais os seres marinhos são amplamente usados em estudos biomédicos. Alguns grupos também compartilham ancestrais com os mamíferos, como os equinodermos e tunicados, podendo auxiliar em estudos evolutivos.



MODELOS MARINHOS PARA A MEDICINA


De acordo com August Krogh, médico e zoólogo dinamarquês, para todo problema fisiológico existe um animal adequado para solucioná-lo. Larvas de estrela-do-mar demonstraram que os equinodermos apresentam o mais primitivo sistema imunológico. Um experimento que utilizou espinhos de roseiras mostrou células fagocitárias envolvendo o espinho aderido à larva de estrela-do-mar, estabelecendo, assim, as bases da imunologia celular e comparativa.



Fotografia de vários indivíduos de ascídia de coloração branca, que se assemelham a pequenas flores em substrato escuro.

Vários indivíduos de ascídia, espécie Botryllus schlosseri, usada em estudos sobre reconhecimento tecidual. Fonte: Massimiliano de Martino/Wikimedia Commons (CC BY-SA 3.0).



Ascídias colocadas próximas umas das outras podem crescer unidas (quando da mesma espécie) ou separadamente (se forem de espécies diferentes). Esses processos revelaram muito sobre os mecanismos de reconhecimento tecidual. As células reprodutivas da espécie Botryllus schlosseri se aderem às células sanguíneas de outros indivíduos, mas não de si próprias. Essa espécie é hermafrodita, porém sua auto-fecundação não ocorre; as suas células reprodutivas reconhecem as células sanguíneas de outros indivíduos. Isso tem implicações sobre o entendimento da infecção viral pelo HIV, de modo a futuramente erradicar a AIDS.


A abundância de ciclinas em ouriços-do-mar ajudaram no entendimento do ciclo celular. As ciclinas, que são proteínas regulatórias encontradas primeiramente nesses ouriços, aparecem em cada ciclo, sendo sintetizadas e destruídas sem haver sua acumulação.


Invertebrados marinhos e vertebrados como peixes são bons modelos sobre osmorregulação, como transporte de íons e fluidos, função renal e regulação do volume de líquidos corporais. Tais animais são expostos a concentrações diferentes de sais, por osmose podem ter suas células murchas ou infladas. A osmose é o processo em que moléculas de água se difundem de um meio para outro, a fim de igualar as concentrações de sais entre os dois lados da membrana celular. Se há uma concentração grande de sais no meio extracelular em comparação ao interior da célula, a água se moverá para o exterior da célula a fim de igualar as concentrações. Dois processos podem acontecer no organismo: regulação do volume celular e restauração dos fluidos corporais. Nos órgãos humanos, tais processos acontecem, principalmente nos rins.



Fotografia de um caranguejo de coloração marrom-esverdeada remexendo o sedimento de coloração cinza-escuro.

Caranguejo da espécie Eriocheir sinensis utilizado em estudos sobre osmorregulação. Fonte: Ron Offermans/Wikimedia Commons (CC BY-SA 3.0).



Todas as células de todos os organismos marinhos, com exceção das halobactérias, acumulam osmólitos orgânicos (um conjunto de solutos envolvidos na estabilização proteica, em resposta às condições ambientais de estresse) internamente. O caranguejo Eriocheir sinensis acumula aminoácidos no meio intracelular com o aumento da salinidade, auxiliando no balanceamento osmótico, evitando a troca abrupta de íons e fluidos de suas células. Com isso, melhores esclarecimentos sobre processos osmorregulatórios em organismos vivos podem ser obtidos.


O peixe-sapo é uma espécie utilizada para estudar a manutenção do equilíbrio em vertebrados. O aparelho vestibular (estruturas encontradas na orelha interna dos vertebrados) é constituído de estruturas anatômicas relacionadas ao nervo vestibular, um gancho sensorial do nervo auditivo. Esse sistema apresenta canais com células ciliares perceptivas dos movimentos dos otólitos, que são pequenos cristais. Quando a cabeça se move, os otólitos fazem o mesmo; as células ciliares percebem tal movimento e enviam as informações para o cérebro. Esse mecanismo é bem conservativo dos vertebrados, inclusive em humanos. O peixe-sapo pode, então, auxiliar no entendimento das desordens do equilíbrio em humanos.



Fotografia de um peixe-sapo de coloração amarronzada com algumas partes avermelhadas, sobre um isopor.

Um indivíduo de peixe-sapo, utilizado em estudos sobre a manutenção do equilíbrio em seres humanos. Fonte: José Antonio Gil Martínez/Wikimedia Commons (CC BY 2.0).



O conhecimento da visão humana é atrelado à descoberta do olho composto dos caranguejos-ferradura. Os fotorreceptores são células encontradas na retina e funcionam percebendo informações visuais do ambiente externo e transferindo-as para o cérebro. Estudos dessas estruturas são relevantes para o entendimento das bases neurais do comportamento.


A lesma-do-mar Aplysia sp. contém grandes células nervosas. Estudos iniciais investigaram um comportamento simples, o reflexo da retirada da brânquia, e avaliaram seu circuito neural. Os resultados demonstraram três formas elementares de aprendizado: habituação, sensibilização e condicionamento clássico. Essas formas de aprendizado auxiliam na memória de curta duração e de longa duração. Tais estudos revelaram que o aprendizado e a memória envolvem mudanças de força das conexões sinápticas no cérebro.



Fotografia de uma lesma-do-mar de coloração marrom com pontos esbranquiçados ao longo do seu corpo, segurada por um pessoa com uma luva branca.

Indivíduo de lesma-do-mar (Aplysia sp.) utilizado em estudos neurobiológicos. Fonte: Dimitris Siskopoulos/Wikimedia Commons (CC BY-SA 2.0).



A descoberta do axônio (prolongamento do neurônio, onde ocorre condução dos impulsos nervosos) da lula-gigante, que mede 0,5 mm de diâmetro, foi um grande avanço para a neurobiologia. Esse axônio é muito grande, em comparação aos dos demais animais. Dois cientistas, Hodgkin & Huxley, ao estudar a célula, encontraram que o potencial de ação se propagava por mudanças na concentração de sódio e potássio. Tais estudos foram essenciais para o entendimento da regulação intracelular de níveis de cálcio e pH e ofereceu bases para o diagnóstico e tratamento de desordens neurais, do coração e de músculos esqueléticos.


Os animais marinhos foram e ainda são extremamente importantes para a sociedade. Para além de sua existência, a riqueza de conhecimento que eles nos oferecem é imensa. Ainda hoje, muitos estudos são realizados com os organismos marinhos ao redor do mundo. Avanços na medicina e, consequentemente, melhora da qualidade de vida humana podem surgir a partir dessas pesquisas. Conservar os organismos marinhos é parte integrante da nossa permanência no planeta como Homo sapiens.



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Bibliografia


COUNCIL, N. R. Capítulo 5: Marine organisms as models for biomedical research. Em: From Monsoons to Microbes: Understanding the Ocean's Role in Human Health. Washington, DC: The National Academies Press, 1999. Disponível em: https://doi.org/10.17226/6368. Acesso em: 04 out. 2020.


RAVEN, P. H.; JOHNSON, G. B.; MASON, K. A.; LOSOS, J. B. & SINGER, S. R. Capítulo 26: The Tree of Life. Em: Biology. Mac Graw Hill, ed. 9., p. 507-509, 2011.


KAY, I. Introduction to Animal Physiology. Oxford: BIOS Scientific Publishers, 1998.


TOMASO, A.W. Sea Squirts and Immune Tolerance. Disease Models & Mechanisms, 2 ed., p. 440-445, 2009. Disponível em: https://dmm.biologists.org/content/2/9-10/440.short. Acesso em: 04 out. 2020.


BAILEY, C. H.; BARTSCH, D. & KANDEL, E. R. Toward a molecular definition of long-term memory storage. Proceedings of the National Academy of Sciences, USA, v. 93, p. 13445–13452, 1996.


HODGKIN, A.L. & HUXLEY, A.F. Action Potentials Recorded from Inside a Nerve Fibre. Nature, v. 144, p. 710–711, 1939.






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